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Ética e racionalidade




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Ética e racionalidade


Ética e racionalidade             A ética possui a razao como seu pilar principal
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Ética e racionalidade


A ética possui a razao como seu pilar principal de sustentaçao. Como já discutido, para que certos questionamentos e ações adentrem na esfera da ética, há o imperativo da justificaçao baseada na razao. Nao é a partir de emoções ou sentimentos que se justifica uma açao que se quer configurar como ética. Assim, a racionalidade será o próximo tópico a ser abordado, que culminará na discussao de dois pares conceituais de origem weberiana.


1 Um breve histórico do papel da razao como critério de ordenamento da vida humana associada


Etimologicamente a palavra razao provém do latim ratio, que significa medida, ou seja, a razao é o instrumento de avaliaçao e julgamento. Pode-se afirmar que a razao - como fonte da ordem na psique do ser humano - foi descoberta pelos gregos do período clássico helênico, sendo Sócrates, Platao e Aristóteles seus principais representantes (Chatelet, 1994). Para esses pensadores, a razao era entendida como uma 'força ativa na psique humana que habilita o indivíduo a distinguir entre o bem e o mal, entre o conhecimento falso e o verdadeiro e, assim, a ordenar sua vida pessoal e social' (Ramos, 1989, p. 2-3). Os pensadores clássicos estavam preocupados com aquela característica do homem que faz dele uma criatura sui generis, que nao se inclui completamente no reino natural, e reconheciam que essa característica é a percepçao que o homem tem da atividade da razao em sua psique . Pelo exercício da razao, e vivendo de acordo com os imperativos éticos dessa razao, o homem transcende a condiçao de um ser puramente natural e socialmente determinado, e se transforma num ator político, ou seja, aquele que pensa e que age (Arendt, 1983, Ramos, 1989).

A partir do século XVII, o conceito de razao é interpretado de uma forma cuja peculiaridade é marcante. Há um deslocamento de centro ordenador da existência humana para o instrumento de previsao de cálculo. O maior impacto dessa transformaçao foi proporcionado pelos trabalhos de Hobbes e até hoje sua influência ecoa. Para Hobbes, em seus escritos de 1651, a razao 'nada mais é do que cálculo (isto é, adiçao e subtraçao) das conseqüências []' (1979, p.27). Hobbes pretendeu despojar a razao de qualquer papel normativo no domínio da construçao teórica e da vida humana associada (Ramos, 1989, p.3). Com isso, a razao sofreu uma reduçao de seu conceito. Tanto Ramos quanto Lux (1993) chamam a atençao para que denominaram de transavaliaçao da razao, que levou à 'conversao do concreto no abstrato, do bom no funcional, e mesmo do ético no nao-ético []' (Ramos, op.cit, p.3). Com isso, valores até entao tidos como perenes sao substituídos pelo cálculo utilitário de conseqüências, adquirindo prestígio e predominancia atitudes consideradas menores ou indignas do cidadao, como por exemplo, a acumulaçao de bens como objetivo principal de vida[3].

Adam Smith (1988) seguindo a tradiçao de Hobbes[4], admite a supremacia do cálculo dirigido para o interesse próprio, aceitando como permanente a idéia de que o ser humano apenas orientaria sua vida pela satisfaçao de suas necessidades mais primárias. Dessa lógica, surge uma nova forma de associaçao humana, com novas crenças e valores. Emerge dessa grande transformaçao um novo paradigma que estrutura o Ocidente como um imenso mercado e, sob tal alicerce, se passa a conceber todo o arranjo da vida humana (Polanyi, 1980).

Maquiavel também colaborou de modo significativo para essa transformaçao. Da mesma forma que Hobbes, Maquiavel nao pinta com tintas fortes o hiato entre o que é e o que deve ser. Mas sim propõe que o homem fosse visto como ele é, decaído, e nao como deveria ser, virtuoso (Giannetti, 1993). Considerando-se o fato de que nos séculos XVII e XVIII, principalmente a Inglaterra, oferecia acúmulo de dinheiro e possibilidades de negócios sem precedentes, somado com a negaçao do referencial clássico, alguns pensadores da época deram luz a novos valores que transmudaram a regra geral e ética do bem coletivo em interesse privado. É importante ressaltar o que Hirschman (1979) esclarece: o enaltecimento da avareza como ordenadora da vida humana tanto pessoal como associada, destituindo a razao como referência para esta tarefa, era a crença de que a 'personalidade humana integral', com suas forças destrutivas desencadeadas pelas paixões - exceto a 'inócua' avareza - se representava como uma ameaça que necessitava ser exorcizada. Em outras palavras, à época se supunha que exercitar o interesse próprio era uma forma de controlar a brutalidade humana.

Assim, por um lado, de Hobbes a Adam Smith e aos modernos cientistas sociais em geral, instintos, paixões, interesses e a simples motivaçao substituíram a razao, como referência para a compreensao e a ordenaçao da vida humana associada. Por outro lado, sob a influência do Iluminismo, de Turgot a Marx, a história substitui o homem, como portador da razao (Ramos, op.cit, p.4). Para Ramos (op.cit.), contra tal situaçao, Max Weber se configura como uma figura isolada, pois rejeita tanto o empirismo britanico e o naturalismo quanto o determinismo histórico. E será nos conceitos weberianos que a construçao do conjunto de categorias para a discussao da ética irá se apoiar.


2 Racionalidade funcional e racionalidade substantiva       


Para vencer as dificuldades da análise da ética nas organizações, recorrer-se-á a dois pares conceituais de origem weberiana: racionalidade funcional-racionalidade substantiva e ética da responsabilidade-ética do valor absoluto ou da convicçao. Distinguir esses conceitos será um passo importante para a definiçao da delimitaçao do ambito específico da organizaçao, do espaço existencial humano que lhe corresponde e do papel de fatores éticos no condicionamento da eficiência e da produtividade.

Em sua obra, Economia e sociedade (1984), Max Weber procurou definir a açao social, distinguindo quatro tipos: a racional no tocante aos fins, a racional no tocante aos valores, a afetiva e a tradicional. A açao social afetiva é determinada por estados emotivos ou sentimentais. A açao social tradicional é determinada por costumes. Em ambos os casos a avaliaçao sistemática de suas conseqüências é nula ou escassa. A açao racional no tocante a valores é fortemente portadora de consciência sistemática de sua intencionalidade, visto que é ditada pelo mérito intrínseco do valor ou dos valores que a inspiram, bem como é indiferente aos seus resultados. É conduta, por assim dizer, heróica ou polêmica, que testemunha fé ou crença num valor ético, religioso, estético, ou de outra natureza, e sua racionalidade decorre apenas de que é orientada por um critério transcendente. A açao racional no tocante a fins é sistemática, consciente, calculada, atenta ao imperativo de adequar condições e meios a fins deliberadamente elegidos (Ramos, 1983).

Com isso, Weber faz a distinçao entre a racionalidade formal e instrumental (funcional) (Zweckrationalität) que é determinada por uma expectativa de resultados ou 'fins calculados' e racionalidade substantiva ou de valor (Wertrationalität) que é determinada independente do cálculo custo/benefício e nao caracteriza nenhuma açao humana que atua de forma hipotética. Na racionalidade funcional nao se aprecia propriamente a qualidade intrínseca das ações, mas sua maior ou menor convergência, dentre outros, para atingir um fim preestabelecido, independente do conteúdo que possam ter as ações. Esta racionalidade nao se pergunta pelos seus pressupostos e nem pelo seu sentido, agindo na esfera do como, sem se perguntar pelo porquê. Isso determina um nível de açao teleológica exclusivamente técnica, interesseira, em que predomina a dominaçao do sujeito sobre o real; ao sujeito cabe estabelecer os fins e eleger os meios de toda a açao (Ramos, 1983; Mühl, 1996). A racionalidade substantiva é o critério de

'todo ato intrinsecamente inteligente, que se baseia num conhecimento lúcido e autônomo de relações entre fatos. É um ato que atesta a transcendência do ser humano, sua qualidade de criatura dotada de razao. Aqui a razao, que preside ao ato, nao é sua integraçao positiva numa série sistemática de outros atos, mas o seu teor mesmo de acurácia intelectual' (Ramos, 1983, p.39).

E continua Ramos,

'esse é um ato de domínio de impulsos, sentimentos, emoções, preconceitos, e de outros fatores que perturbam a visao e o entendimento inteligente da realidade. De ordinário, a racionalidade substantiva é estreitamente relacionada com a preocupaçao em resguardar a liberdade'[9].

Nesta racionalidade seus pressupostos e seu sentido ganham importancia, preferindo antes agir na esfera do porquê, participando da esfera do como apenas por acidente.

Em resumo, a razao como força ordenadora da mente - permitindo o equilíbrio dos cosmos interno - se constitui de uma dimensao instrumental voltada para o cálculo de conseqüências e de outra dimensao entendida como substantiva, direcionada a elaborar e julgar os valores associados à própria vida. Estas duas dimensões da razao permitem ao ser humano calcular e legitimar, ou nao, seus atos, fruto da liberdade de escolha que só ele possui entre todos os seres vivos.


3 Ética da responsabilidade e ética da convicçao     


Agora parte-se para a conceitualizaçao de outro par de inspiraçao weberiana. Ramos, (1983, p.42-3) assinala os seguintes pontos quanto ao uso que se fará das duas modalidades de ética:

A ética da responsabilidade corresponde à açao racional referida a fins, sendo seu critério fundamental a racionalidade funcional. A ética da convicçao ou do valor absoluto está implícita em toda açao referida a valores, sendo seu critério a racionalidade substantiva;

As duas éticas nao sao necessariamente antagônicas. No tocante à organizaçao, teórica e concretamente, pode-se admitir congruência entre as duas éticas, na proporçao em que qualificações e a natureza do trabalho se coadunam com os valores dos indivíduos;

A nao ser em casos extraordinários, nenhum indivíduo organiza sua conduta sob a espécie exclusiva de nenhuma das duas éticas. Portanto, absoluta racionalizaçao com relaçao a valores ou com relaçao a fins sao casos limites.

Em suma, quando o ser humano encontrar substantivamente legitimidade, ou nao, do seu agir, sem a imposiçao de regras e sob o domínio da razao substantiva, ele age sob o imperativo da ética da convicçao. Quando há a imposiçao de regras, ou seja, a legitimidade do agir é um atributo previamente definido pelo grupo a que ele pertence, entao o ser humano age ou se comporta sob o imperativo da ética da responsabilidade, fruto da razao funcional ou instrumental.

Na forma de um quadro resumo, tem-se:


Quadro 1: Síntese das principais categorias weberianas

Açao social

Critério

Processo

Ética

Açao racional referida a fins

Racionalidade funcional

Adaptaçao meios/fins

Ética da responsabilidade

Açao racional referida a valores

Racionalidade substantiva

Orientaçao valorativa

Ética da convicçao ou do valor absoluto

Elaborado pelo autor a partir dos fundamentos teóricos apresentados





'Obra dos gregos, o racionalismo por eles elaborado aplicou-se em reduzir as coisas em modelos conceituais. Era um racionalismo contemplativo e interpretativo para o qual a natureza estava impregnada pela mente, entendida esta como o elemento governante, dominador, regulador; um racionalismo para o qual importavam quase unicamente as substancias (os objetos concebidos em si mesmos), e nao as relações entre eles. O racionalismo grego era, assim, por sua própria índole, incompatível com a racionalizaçao, na acepçao particular do termo.

É que a inteligência grega só admitia a racionalidade como fim, como valor absoluto [] O racional mesmo era sinônimo de perfeito, exato, bom, verdadeiro' (Ramos, 1952, p.35).

Aristóteles (1992, p.24) procura determinar qual a finalidade da existência de um homem livre: 'Até as plantas participam da vida, mas estamos procurando algo peculiar ao homem. Excluamos, portanto, as atividades vitais de nutriçao e crescimento. Em seguida a estas haveria a atividade vital da sensaçao, mas também desta parecem participar até o cavalo, o boi e todos os animais. Resta, entao, a atividade vital do elemento racional do homem; uma parte deste é dotada de razao no sentido de ser obediente a ela, e a outra no sentido de possuir a razao e de pensar'.

Para Aristóteles, o conceito de razao está intimamente ligada à noçao de bem. As ações humanas sao empreendidas com vistas a um bem, sendo aquelas que se afastam desse rumo um desvio da 'reta razao'. Assim, para Aristóteles (1985, p.20), 'a vida dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob compulsao, e obviamente nao é o bem que estamos procurando'.

Apesar de Hobbes e Adam Smith divergirem com respeito ao papel do Estado e visao de indivíduo, um ponto em comum entre os dois é a concepçao da razao como meramente instrumento de cálculo, sendo nesse ponto o que se quer dizer com 'seguindo a tradiçao'.


Pensadores adeptos da escola utilitarista.


Funcional é tudo aquilo capaz de cumprir com eficiência seus fins utilitários.

Assim, como exemplifica Ramos (1952), é racional a série de atos preparativos de um suicídio, com referência ao objetivo intencionado pelo suicida. Ainda mais, se alguém ajuda conscientemente o suicida a conseguir aquele objetivo, conduz-se de maneira funcionalmente racional. Se o amigo do suicida impede que este atinja seu objetivo, conduz-se de maneira funcionalmente irracional.

Substancia, na tradiçao aristotélico-tomista, é o que há de permanente nas coisas que mudam (a essência), e que é o suporte sempre idêntico das sucessivas qualidades resultantes das transformações. Para Mannheim (1962), substancialmente racional é um ato que revela uma visao inteligente das relações que existem entre os fatos, numa dada situaçao. Isto é, um julgamento de fato. Na apreciaçao do sentido de um ato dessa espécie, prevalece o paradigma da substancia.

Nessas definições, Ramos apóia-se em Mannheim (1962).

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