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O resgate da alteridade




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O RESGATE DA ALTERIDADE



A sociedade moderna, sob influências do tecnicismo, fruto da racionalidade, provoca mudanças significativas na compreensao do homem e do mundo. Neste capítulo, será levantada uma análise teórica que visa à preservaçao do homem e seus valores em exercício, a partir do resgate da alteridade, isto é, o homem que se desloca de si mesmo para se dirigir ao Outro. A alteridade, por sua natureza, identifica cada ser como único e o nome próprio lhe confere identidade. Refletir e pensar no Outro como alguém merecedor de atençao, ao contrário da mentalidade Ocidental contemporanea, tao fragmentada por ideais de triunfalismo neoliberal e narcisismo que tornaram o homem com o passar do tempo individualista e ególatra, é tarefa essencial da alteridade.

O conceito antropológico da EdC que surge exatamente neste contexto visa a uma nova mentalidade que vai contra o egoísmo humano ao sugerir a "cultura do Dom de si", o que pretende qualificar o homem como ser aberto à comunhao, um homem que se preocupa com o desenvolvimento e crescimento coletivo.





1 - Paul Ricoeur e o problema do cogito


Ricoeur, em sua atividade de pensador e com alicerces em sua cultura crista, andava desconfiado da soberania do sujeito - idéia clássica disseminada - e da tendência totalizante em nao reconhecer os limites das idéias cartesianas.

A questao do cogito exaltado por Descartes, na visao de Paul Ricoeur, trouxe uma visao direcionada ao eu, o que deixou de lado a questao da alteridade. Paul Ricoeur ao referir-se ao cogito ressalta que:


O cogito nao tem nenhuma significaçao filosófica forte se sua posiçao nao é ocupada por uma ambiçao de fundaçao extrema, última. Ora, essa ambiçao é responsável pela formidável oscilaçao sob o efeito da qual o "eu" do "eu penso" parece alternativamente exaltado fora de toda a medida a primeira verdade e rebaixado à ilusao excepcional. Se é verdade que essa ambiçao de fundaçao extrema radicalizou-se de Descartes a Kant, depois de Kant a Fichte, enfim ao Husserl das Meditações cartesianas, nao obstante, pareceu-nos suficiente para indicá-la ao seu lugar de nascença, no próprio Descartes, cuja filosofia atesta que a crise do cogito é contemporanea à posiçao do cogito (Ricoeur, 1991, p. 15).




Descartes deixa de lado o corpo, reduzindo-o mero objeto, porque o pensamento é o que define/faz o eu, sendo assim, nao se fazem necessárias as relações. O eu é o tudo pelo pensamento (cogito), entao, nao há necessidade do corpo. O cogito é reduzido a uma coisa que pensa.

A respeito do assunto Emmanuel Lévinas ressalta que:


O cogito cartesiano, com sua certeza de existência para o "eu", repousa no cumprimento absoluto do ser pelo presente. O cogito, segundo Descartes, nao prova a existência necessária do pensamento, mas sua existência indubitável. Ele nao traz nenhum ensinamento sobre o modo de existência do pensamento (LÉVINAS, 1986, p. 97).


Paul Ricoeur se propõe a estudar a crise da subjetividade detectada por ele a partir de um confronto existente entre o cogito exaltado por Descartes e o cogito demolido por Nietzsche: "O cogito partido: tal poderia ser o título emblemático de uma tradiçao provavelmente menos contínua que a do Cogito, mas cuja virulência culmina com Nietzsche, fazendo deste o confronto privilegiado de Descartes" (RICOEUR, 1991, p. 22).

Enquanto Descarte exalta o cogito, Nietzsche o proclama demolido e a partir deste confronto, é que Ricoeur pensa na questao do cogito colocando-o em dúvida. Desenvolve reflexões que reafirmam esta crítica ao cogito cartesiano e renova assim a distinçao entre o eu e o si. Dessa forma, o cogito se apresenta nesta concepçao como algo duvidoso. A idéia de cogito exaltado desencadeia mudanças na compreensao do homem e do mundo na sociedade atual. A crítica de Nietzsche à subjetividade do sujeito declara já reduzido o cogito, a partir da racionalidade instrumental. Nietzsche e Heidegger estabelecem a mesma crítica à sociedade técnica como desencadeadora de uma mudança na compreensao do homem e do mundo.

O conceito de si-mesmo, introduzido por Ricoeur, levou-o a uma conceitualizaçao de crítica ao cogito, que abriu um vasto horizonte, levada a efeito por outros autores. Essa crítica deixa expressa a idéia da urgência em elevar a alteridade, dissipando do sujeito qualquer posiçao egocêntrica.

O agir humano deve integrar o sujeito agente com a filosofia da açao: "é preciso que o eu egoísta se apague para que nasça o si" (RICOUER. Reflexao Feita, p.76, in, CESAR, C. M. 1998, p. 61).

O si é confirmado como agente por suas capacidades especialmente em fazer e falar, que lhe proporciona interaçao com o outro, como um ser agente.

Para Ricoeur a definiçao da perspectiva ética consiste em visar à verdadeira vida com e para o outro nas instituições justas: "A famosa aporia que consiste em saber se é preciso amar a si mesmo para amar um diverso de si nao deve, por conseguinte nos cegar" (RICOEUR, 1991, p. 214). É ela de fato que conduz diretamente ao centro da problemática do si e do diverso de si. Segundo ele, é preciso estar atento para uma reelaboraçao do sujeito com o cuidado de nao cair no individualismo. A esse respeito a EdC encontra, no Dom de si, o ponto de equilíbrio entre a individualidade e a sociabilidade, sem desmerecer ambas as dimensões.

Seria simples demais afirmar que a reflexao filosófica de Ricoeur nao tem nada a ver com sua fé religiosa. Há sim no sentido de uma resposta da fé às dúvidas da razao. Sua relaçao com o sagrado constitui-se de uma economia de dom, mais fundante que a economia de lucro ou troca, esta relaçao com o sagrado se faz de graça, por dádiva e, por conseqüência, destrona o sujeito do lugar em que fora colocado pela tradiçao filosófica moderna desde Descartes.

Ricoeur Fala de alteridade como voz da consciência que se dirige ao eu, despertando-lhe a uma açao engajada no mundo com o Outro. O sujeito de açao resgata valores servindo-se das capacidades artísticas que, com sentido ético, através das atividades criadoras, sao responsáveis por tal resgate.

Ao introduzir a idéia de mutualidade, Ricoeur declara que: "Cada um ama o outro como ele é. Nao é precisamente o caso de amizade utilitária onde um ama o outro em razao de vantagem esperada" (RICOUER, 1991, p. 215). Neste sentido, as relações de amizade tornam-se recíprocas, com a devida justiça.

A consciência da bondade que há no homem torna sua existência agradável e dessa forma, ele sente a necessidade de participar da vida e tem consciência do outro. A sua própria existência se lhe torna desejável. A amizade torna-se relaçao de reciprocidade em que há equilíbrio nas atitudes do dar e do receber. Despertar de igualdade e de partilha: "o outro é agora esse ser sofredor do qual nao cessamos de marcar o lugar vazio em nossa filosofia da açao, designando o homem como ativo e sofredor" (RICOUER, 1991, p. 223).

Além da estima de si mesmo, é importante relevar e reconhecer a existência, a presença do outro: "A similitude é o fruto da troca entre estima de si e solicitude é o fruto da troca entre estima de si e solicitude para outros. Essa troca autoriza a dizer que nao posso me estimar eu mesmo sem estimar outrem como eu mesmo" (RICOEUR, 1991, p. 226). Com isso Ricoeur quer dizer que todos sao responsáveis e capazes de fazer algo no mundo, a partir da estima de si mesmo. Mais adiante afirma: "o respeito de si tem a mesma estrutura complexa que a estima de si" (RICOEUR, 1991, p. 238).

Sao interessantes as suas constatações sobre a justiça e injustiça. Nestas, Ricoeur observa que o senso de injustiça parece estar mais em alta que o de justiça: " pois a justiça é quase sempre o que falta, e a injustiça o que reina. E os homens têm uma visao mais clara daquilo que falta às relações humanas do que da maneira correta de organizá-las" (RICOEUR, 1991, p. 232). Diz que até mesmo com os filósofos existe esta mesma preocupaçao.



2 - Enrique Dussel e a ética libertadora do homem


Para melhor compreender o contexto atual da sociedade, deve-se levar em consideraçao que nao é por acaso que hoje se fala em libertaçao e resgate à valorizaçao da vida, assim como em questões, como bioética, biopolítica, valor da vida, satisfaçao de necessidades, valorizaçao da pessoa, urgências impostas pelo próprio mundo ocidental conturbado em seus valores morais e éticos.

Observa Enrique Dussel, a partir de uma leitura de Michel Foucault, que a alteridade é negada sobretudo nas relações de poder, pois os detentores deste agem de forma dominante mediada por uma certa disciplina aplicada nos vários setores da sociedade. A dominaçao gera conseqüentemente a exploraçao e anulaçao de valores vitais ao ser humano:


Aparece, pois, a possibilidade da exploraçao e da dominaçao. Abarcar e concentrar os meios materiais de vida é destruir as possibilidades de vida do outro, já que o que se concentra e se tira nao sao simples riquezas, mas meios de vida A dominaçao torna possível a exploraçao e esta dá materialidade à dominaçao Nenhuma dominaçao pode ser definitiva sem o manejo da distribuiçao dos meios materiais da vida (HINKELAMMERT, 1984, p. 242 IN Dussel, 2002, p. 504).



Neste caminho, recorre-se a Karl Marx que, com seu conceito de filosofia que age sobre o plano material na história se estendendo do campo político ao econômico, fomenta uma revoluçao das estruturas de dominaçao a partir da uniao e organizaçao da classe de proletários tidos como dominados para uma efetiva libertaçao de sua condiçao: "Marx, tendo muito claro que a libertaçao dos operários será fruto da autolibertaçao dos próprios operários, começará um longo caminho emaranhado de posições ambíguas" (Dussel, 2002, 510).

Sendo assim, Marx realiza múltiplas pesquisas que resultarao nas quatro redações de "O capital". Mais tarde a polonesa Rosa Luxemburg, afirmará que para uma verdadeira libertaçao sao indissociáveis a teoria e a práxis como condiçao de libertar as vítimas, por assim dizer dos dominados do sistema de poder. Porém, para que a dualidade teoria e práxis ocorra, faz-se necessária uma educaçao apropriada, sem a qual as "vítimas" nao tomarao consciência de seu estado para organizarem-se.

A ética libertadora acontece por intermédio de sujeitos comprometidos com a vida cotidiana e com gestos concretos no agir, até mesmo o sujeito na condiçao de vítima ou na de solidário com as vítimas também é capaz de organizar, realizar e transformar sistemas éticos.

A questao do sujeito perpassa os mais diversos rostos das diferentes condições de vida, que se ligam por um reconhecimento de responsabilidade pelo outro, que nao é julgando mais como mera funçao de um sistema.

Dussel observa a partir de Schelling que a dualidade, proposta por Descartes, conseqüentemente, nega o sujeito por reduzir o ego à funçao cognitiva desvinculada do corpo, isto é, exaltaçao da capacidade cognitiva excluindo a concepçao de todo do sujeito. O "sujeito moderno" se fundamenta no próprio eu, onde a autoconsciência é ato absoluto em que tudo converge para o eu.

Heidegger critica a subjetividade do sujeito moderno como cogito:


O conhecimento (Erkennen) nao cria um commercium primeiríssimo do sujeito (Subjekt) com o mundo, nem este commercium surge de uma açao do mundo sobre o sujeito. Conhecer é um modo do ser-aí (Modus des Dasein) fundado no ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). Por isso o ser-no-mundo pede uma hermenêutica prévia como estrutura fundamental" (Heidegger, 1963, parágrafo 13, p. 62 trad. Esp., 1968 p. 74 in Dussel, 2002, 522).


Heidegger vai mais além na afirmaçao do Dasein, isto é, ser aí, mas um ser em ser-em, ser com os outros, ou seja, o ser que se dá nas relações negadas como efeito do cogito, pois a racionalidade instrumental, voltada para o meio/fim, nega outro tipo de racionalidade.

O sujeito moderno, a quem aponta Dussel, refere-se ao ego cogito, o que constitui uma exaltaçao da capacidade do pensamento, da racionalidade que, conforme se pode identificar nega o sujeito no sistema.

O pensamento pós-moderno preocupa-se em criticar a subjetividade cartesiana, pois o pensamento moderno exagerou na questao do sujeito autoconsciente como centro das atenções e dessa forma trouxe conseqüências até desumanas em relaçao à alteridade com as atitudes como, o domínio e a violência, por exemplo.

Dussel afirma que a pessoa é um conceito relacional, isto é, só se torna pessoa a partir do outro, ela existe dentro das situações que a circundam. O ego cogito e toda intersubjetividade remetem a um sujeito humano, de forma a ser concreto e vivo como principal critério de subjetividade.

Um exemplo que ajuda a compreender o lado humano ignorado pelo cogito, sao as regras do mercado. Depois de um dia intenso de trabalho, cumprido o tempo, os operadores, seres humanos limitados e expostos às necessidades de sua natureza, devem repousar. Exemplo simples, mas que nos faz compreender a dimensao humana, o ser em relaçao e nao apenas racionalmente técnico operador de funções. Em uma empresa, a produçao, o transporte sao realizados por pessoas de carne e osso e os produtos serao destinados a outras pessoas da mesma espécie!

Dussel nao nega o imenso valor do conhecimento e do que o sujeito é capaz a partir dessa importante modalidade.

O sujeito, inegavelmente, está presente nos sistemas, surge em situações críticas como Outro, apresenta o rosto do excluído ou oprimido, as vítimas do sistema dominante e excludente. É a interpelaçao do sujeito que chama lamentando sua dor, fome, frio. É a vítima que espera uma resposta de seu interlocutor: "O outro é a vítima possível e causada por minha açao funcional no sistema. Eu sou responsável" (DUSSEL, 2002, p. 529). Trata-se de uma atitude de reconhecimento em prol da vida e nao da morte do sujeito:


Estamos falando, pois, da vida de cada sujeito, última referência ativa, como organismo auto-regulado vivente, social e histórico, mas também como crítico autoconsciente, sem reducionismo (quando se pretende definir como essencial o sujeito como cogito), mas tampouco com unilaterismos (quando se nega todo sujeito, o cogito ou o sujeito transcendental kantiano com todo outro tipo de subjetividade: joga-se fora ' a "criança com a água do banho." (DUSSEL, 2002, p. 530).


Dussel aponta pistas ao referir-se à subjetividade inter-subjetiva para que constituam uma comunidade de vida, tais pistas sao: um modo comunicável, cultura, tradiçao, necessidades e consumo semelhantes, ações solidárias. Cada qual deve encontrar, no sistema, espaço para argumentar, participar, mostrar seu rosto: " de fato, o surgimento de novos sujeitos supõe um processo ético da passagem de um grau de subjetividade passiva a outros de maior autoconsciência, no claro-escuro dos diagramas do poder estratégico" (DUSSEL, 2002, p. 532). Esta autoconsciência é definida por Paulo Freire como processo ético-crítico cujo sujeito é a comunidade das vítimas.


3 - O resgate da alteridade em Emmanuel Lévinas


O resgate da alteridade de Lévinas se dá com a contemplaçao do rosto do outro que revela a verdade, o encontro com o Outro, portanto, torna o relacionamento solidário, produz a verdade. O propósito de Lévinas é a reestruturaçao de cidadania e a primazia ontológica ao Outro, negada no processo histórico do Ocidente. Ao deparar-se com o Outro, o Eu e seus privilégios entram em questao. A própria consciência de si, seria o reconhecimento do Outro, ou seja, o reconhecimento de que nao se vive isolado, mas em meio a uma comunidade, por assim dizer, de outros, com suas realidades específicas pelas quais o eu relaciona-se constantemente. O que Lévinas busca é uma forma de alternativa para reconstruir a subjetividade do homem ocidental moderno.

Neste sentido, a EdC, apresenta um perfil dinamico do homem que, através da economia, cresce em todas as outras dimensões e torna-se cada vez mais aberto às necessidades e anseios do Outro. A EdC abre espaço para a integraçao recíproca entre os homens.





3.1 - Alteridade


A ética levinasiana é um questionamento da espontaneidade própria pela presença do Outro, apresenta uma preocupaçao que leva em conta a pluralidade contida no universal. A própria cultura, ou melhor, a oportunidade de Lévinas no contato com diversas línguas tem demonstrado essa constataçao. A cultura hebraica fá-lo compreender o amor como caridade e a filosofia, a seu ver, nao é simplesmente amor à sabedoria, mas como é próprio da cultura hebraica de os verbos transmitirem idéia de "mais além", refere-se à sabedoria do amor. Mais ainda, para Lévinas, essa sabedoria se traduz em responsabilidade pelo Outro. Dessa forma pode-se traduzir Lévinas para nossos dias como a busca em reconhecer o lugar do Outro e tornar-se solidário em meio à realidade de globalizaçao tao excludente.


A filosofia: sabedoria do amor a serviço do amor A filosofia serve à justiça tematizando a diferença e reduzindo o tematizado à diferença Num movimento alternativo, como aquele ceticismo à refutaçao que o reduz a suas cinzas, e destas cinzas renasce, a filosofia justifica e critica as leis do ser e da cidade (LÉVINAS, 1982, p. 372).




O conceito de filosofia como sabedoria do amor reflete a tendência de Lévinas ao amor, pois é justamente o amor que é capaz de mover o ser humano, sua sensibilidade e responsabilidade em direçao ao outro, quando vítima com sua dor, e construir, a partir de entao, uma ordem nova.

A ética, ocupando o objeto central da filosofia de Lévinas, aliada à alteridade, transmite a idéia de responsabilidade do si pelo Outro:



A saída de si está na responsabilidade pelo "outro"; em ocupar-se com o "outro"; está em pensar no "outro", em sua vida e em sua morte, antes de preocupar-se consigo mesmo. A responsabilidade pelo outro é o bem, contudo ético por excelência, e o filosoficamente primeiro, anterior a toda anterioridade. "Sair de si é ocupar-se com o outro, com o sofrimento e com a morte dele em vez de ocupar-se com sua própria morte.() penso que é o descobrimento do fundo de nossa humanidade, o próprio descobrimento do bem no encontro com o outro, nao tenho medo da palavra bem; a responsabilidade pelo outro é o bem. Nao é agradável, é bem (COSTA. L., 2000, p. 44-45).


Provindo do latim o termo responsabilidade - de spondere - significa tomar a cargo, trata-se de assumir o Outro, vítima da pobreza, da violência, da injustiça, ou melhor tomar parte nas dores do Outro.


O 'ser para o outro", constitutivo da subjetividade e da intersubjetividade, é o conteúdo ético por excelência e o filosoficamente primeiro, anterioridade anterior a toda anterioridade, proposta ao Ocidente pela via do diálogo e com uma pretensao universal de validade que atinge a esfera do humano (COSTA, 2000, p. 50).


Para entender a filosofia moderna ocidental, Lévinas fundamenta-se na compreensao do sujeito:


Lévinas começa afirmando que a filosofia moderna ocidental caracteriza-se fundamentalmente pela noçao de sujeito e por suas conseqüentes implicações, tais como a centralidade do problema do conhecimento, a problemática constituiçao do sujeito ao objeto e sua relaçao com ele, a especificidade dessa relaçao, irredutível às relações como semelhança, igualdade, açao, paixao, causalidade - caracteriza a filosofia moderna (COSTA, 2000, p. 52).


Lévinas recebeu influências importantes dos contatos com o pensamento de Husserl. Este faz críticas à cientificidade moderna, alegando que tal corrente de conhecimento, embora traga benefícios relevantes, acaba por desumanizar o homem.

O homem, encantado com a potência da ciência, fê-la perder seu sentido, por ser a ciência indiferente à vida humana. Lévinas detecta na modernidade um vazio e insuficiência da filosofia e da ciência. Sendo assim, propõe um jeito novo de açao fundado numa ciência com radical autenticidade e que seja universal.

Ao fomentar questões sobre o resgate da alteridade, é compreensível a atividade de Lévinas, pois o judaísmo, sendo uma das culturas que embasa seu pensamento, na história do povo de Israel, com freqüência remonta-se à questao do resgate de várias formas, no sentido de salvar vidas, na purificaçao dos pecados ou ainda na libertaçao de escravos. Dessa forma, resgatar a alteridade significa libertar o outro de qualquer opressao ou ideologia.


3.2 - A relaçao com o Outro


O eu, quando preso ao ser, encontra uma porta de entrada, um meio de se libertar no encontro com o Outro, que se faz necessário para a própria libertaçao do eu.

Para concretizar a idéia de Outro, Lévinas, em primeiro lugar, evidencia a família, tendo por primeiro a figura feminina e em seguida os filhos, como relaçao triádica em que cada qual se constitui como ser para o Outro. Mais tarde, em suas obras, remete à idéia de outro para todo o ambito humano.

O Outro é o fraco, ou melhor, o desprovido de tantas necessidades, que grita por ajuda, que está bem aí à frente e nao há como virar o rosto a ele: " O Outro, enquanto Outro, nao é somente um alter-ego. Ele é o que eu nao sou: ele é o débil enquanto eu sou o forte; é o pobre, é a viúva e o órfao. () ou entao é o estrangeiro, o inimigo, o poderoso ()" (COSTA, 2000, p. 92).

A relaçao com o Outro acontece face-a-face, sem mediações, depende exclusivamente do ser que busca esta face. Para que isto ocorra verdadeiramente sem hipocrisia, faz-se preciso aquilo que Lévinas chama de "para além" como porta de saída de um "eu" fechado que se abre para o Outro, numa relaçao face-a-face com o Outro que é diferente do Eu, que também por natureza é diferente.

Um dos grandes empecilhos na consolidaçao da alteridade é a violência. A violência aplicada ao ser afeta a identidade pessoal como também faz cair todas as possibilidades de alteridade com sua força destrutiva:


A guerra destrói a identidade e a possibilidade da alteridade de todos os que nela estiverem envolvidos. [] A guerra nao mostra a exterioridade nem um outro enquanto Outro; destrói a identidade do Mesmo. A face do ser que aparece na guerra se fixa no conceito de totalidade que domina a Filosofia Ocidental". (LÉVINAS, 1961, p. 6, in, COSTA, 2000, p. 97) [] A paz dos impérios que surgiram da guerra tem seu fundamento na guerra. Nao devolve aos seres alienados sua identidade perdida (COSTA, 2000, p.98).



Lévinas critica a hipocrisia verificada no Ocidente:


Uma civilizaçao apegada ao fato de que "há-guerra" e simultaneamente desejosa da paz. Uma sociedade de filósofos da experiência e da evidência a seco (categorias da totalidade), mas também de profetas que apontam para o além (ou para o aquém) da evidência, da experiência e da secura da totalidade de sentido e significado. "Na verdade, desde que a escatologia opôs a paz à guerra, mantém-se a evidência da guerra nesta civilizaçao essencialmente hipócrita, isto é, apegada ao mesmo tempo ao Verdadeiro e ao Bom, daí em diante antagônicos" (COSTA, 2000, p.103).   


O "Ser para o Outro" transmite idéia de infinito. Nao há sentido em ser no mundo simplesmente sem a presença de vida. Dessa forma Lévinas sugere uma metafísica que parta para fora, que busque caminho diferente, de outro modo. Este Outro é também definido como o diferente, outro caminho, pode ser o modo de se realizarem obras, de pensar e agir.

O que proporciona este movimento que nasce do "mesmo" e parte para o Outro é um certo desejo, desejo metafísico, que nao se contenta apenas em satisfazer-se, mas de ir além das satisfações.

A relaçao entre o mesmo e o Outro para constituir uma totalidade, segundo Lévinas, necessita de que se pense em um outro modo para a aproximaçao. Um ser pensado com uma alteridade é a base da ética proposta por Lévinas.

A relaçao com o Outro refere-se a qualquer Outro que nao seja o mesmo, porém Lévinas privilegia a relaçao com o outro ser humano, que é o tipo de outro por excelência.             O outro ser humano é percebido como infinito. O desejo é definido como o infinito no finito, é o mais no menos. O outro ser humano encontra sua forma de apresentar-se no rosto, manifestaçao ou expressao por excelência, o que permite a idéia de infinito, tal apresentaçao faz cair idéias extraviadas ou distorcidas que se pode fazer do outro: "O rosto do Outro a todo momento destrói e desborda a imagem plástica que ele me deixa, a idéia à minha medida e a medida de seu ideatum, a idéia adequada" (COSTA, 2000, p.125).

A relaçao entre entes humanos é ética, essa relaçao é uma experiência que, eleva o eu para a idéia do infinito que é o Outro. O real está em fazer a experiência do encontro com o Outro sem mediações, ficar face-a-face com o Outro que vem ao encontro de maos vazias e desprovido em suas condições materiais.

A relaçao com o Outro nao se dá fora do mundo, mas inserido nele. A relaçao com o rosto é linguagem e doaçao, bondade e justiça, desejo e deixar-se. O rosto é denominado como toda apresentaçao exterior que nao encontra em nosso mundo nenhuma referência.

O ambito de vida humana por excelência, considerado por Lévinas como ideal de vida boa, é a responsabilidade com o Outro, é o ser para o Outro. Ser responsável pelo Outro é ser impelido e ordenado ao primeiro que passa pelo eu, o próximo com suas necessidades e limitações.

Sensibilidade (um dos principais conceitos formulados por Lévinas) é definida como uma abertura, uma espécie de passividade que, pode ser substituída por hospitalidade, recebimento. A relaçao com Outro ser humano significa recebê-lo antes de pensá-lo, um gesto fraterno é este recebimento do Outro "em mim".

O tema do Outro, alteridade que o Ocidente parece ter perdido, é apresentado como saída, como caminho a se reencontrar com o sentido mais pleno da realizaçao humana:


O ser que se expressa se impõe, precisamente chamando-me  a partir de sua miséria e nudez sem que possa fechar meus ouvidos a seu chamado deixar seres humanos sem comida é uma falta que nenhuma circunstancia pode atenuar: aqui nao se aplica a distinçao do voluntário involuntário, diz Rabbi Yochanan. Diante da fome de seres humanos a responsabilidade se mede objetivamente ao desvelo do ser em geral (Heidegger), como base do conhecimento e como sentido do ser, pré-existe a relaçao com o ente que se expressa (o outro) ao nível ontológico (antecede o Nível ético. (LÉVINAS, 1968, p. 175, in, DUSSEL,1982, p. 367)

A presença do rosto proveniente de além do mundo, que me compromete na fraternidade humana, nao me esmaga como o que se apresenta como temível O Outro, que me manda a partir de sua transcendência, é também o estrangeiro, a viúva e o órfao em relaçao aos quais estou obrigado" (LÉVINAS. 1968, p. 190, in, DUSSEL, ética e Liberdade: 368).



3.3 - Olhar o rosto


Lévinas fala de um olhar voltado para o rosto, considerando que olhar significa percepçao, conhecimento. A percepçao é capaz de dominar a relaçao com o rosto. O rosto é a parte do corpo que se apresenta sempre de forma nua, que será exposta e a experiência de Lévinas em meio à guerra, permite-lhe afirmar a dificuldade de matar alguém que se encara de frente. Toda pessoa reveste-se de uma dignificaçao, isto é, personagem (professor, médico, operário), porém isso nao acontece com o rosto, pois este nao deve ser visto como personagem específica, mas como uma pessoa em sua dignidade humana: "() apesar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem está nu: é o pobre por quem posso tudo e a quem tudo devo. E eu, que sou eu, mas enquanto "primeira pessoa' sou aquele que encontra processos para responder ao apelo" (LÉVINAS, 1982, p. 87).

Mas qual é a concepçao de responsabilidade para Lévinas? " Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que nao fui eu que fiz, ou nao me diz respeito, é por mim abordado como rosto" (LÉVINAS, 1982, p. 87).


Desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter que assumir responsabilidades a seu respeito; a sua responsabilidade incumbe-me. É uma responsabilidade que vai além do que faço. Habitualmente, somos responsáveis por aquilo que pessoalmente fazemos. A responsabilidade é inicialmente um por outrem, isto quer dizer que sou responsável pela sua própria responsabilidade (LÉVINAS, 1982, p. 88).



A proximidade com outrem nao significa simplesmente conhecer o outro, muito menos a responsabilidade se relaciona como a um objeto ou mesmo sujeito, mas como algo concreto que visa ao humano a partir de seu rosto contemplado na condiçao em que este se apresenta.

A atitude de conhecer nao significa o mesmo que proximidade. Uma proximidade que crie laços só será possível a partir da responsabilidade, independentemente de que seja aceita ou nao e ainda que nao se possa fazer algo de concreto em prol do homem.

Ser responsável é ter a disponibilidade de se apresentarem os préstimos pessoais, fazer algo, assumir atitudes de doaçao, fazer tudo com espírito humano, com diálogo, com o propósito de servir. Gestos como estes solidificam a idéia de resgate de alteridade, pois vao para além das imagens feitas do outro homem. O rosto do Outro por si faz pedido, traça ordens pela própria significaçao do rosto e o sentido de responsabilidade que desperta no eu.

A responsabilidade por outrem para ser verdadeira nao deve esperar reciprocidade, uma atitude de resposta por parte do Outro é uma outra história. Ser responsável neste sentido é contemplar a todos com o que sao e o que possuem: "O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que os outros" (LÉVINAS, 1982, p. 91).

A tarefa que cabe ao eu é insubstituível, é uma missao especial:


Sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. Vê-se assim que, no sujeito humano contemporaneo de uma sujeiçao total, se manifesta minha primo-genitura. A minha responsabilidade nao cessa, ninguém pode substituir-me, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posiçao ou da deposiçao do eu soberano na consciência de si, deposiçao que é, precisamente a sua responsabilidade por outrem (LÉVINAS, 1982, p.92-93.



O eu encontra sua dignidade e realizaçao naquilo que faz, buscando cumprir o seu papel na realizaçao de quem passa ao seu lado:


A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que, humanamente, nao posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade do único, Eu, nao intercambiável. Sou eu apenas na medida em que sou responsável. Posso substituir a todos, mas ninguém pode substituir-me. Tal é minha identidade inalienável do sujeito (LÉVINAS, 1982, p. 93).


Lévinas, fruto de uma tradiçao religiosa, reconhece o serviço ao próximo como forma de culto, de louvor a Deus, ao, como ele mesmo define, de testemunho da glória do Infinito, mesmo assim, nao coloca em dúvida seu rigor de responsabilidade por outrem.



3.4 - Linguagem


A linguagem, meio de comunicaçao que permite o contato direto com o outro, é traduzida por Lévinas como atividade pura que constitui o próprio movimento (verbalidade) do verbo. A língua é meio essencial pelo qual o pensamento se expressa. Existe, porém, a ilusao de que ela seja apenas um instrumento do pensamento e que este possa existir independentemente da língua.

A linguagem entendida como sistema de signos acaba por fantasiar a idéia de que se pode criar um pensamento pré-lingüístico. Na verdade, a realidade da língua está implícita conscientemente, com exceçao nos casos em que vem a se tornar um objeto de estudo, criando assim uma idéia distorcida de que se relacionada com o pensamento colocaria o sujeito diante de atividades diferentes.

Expressivibilidade é o termo usado por Lévinas ao falar da linguagem voltada para o Outro. A saída do si, defendida por Lévinas, está intrinsecamente ligada ao conceito de alteridade:


A saída de si está na responsabilidade pelo "outro"; em ocupar-se com o "outro"; está em pensar no "outro", em sua vida e em sua morte, antes de preocupar-se consigo mesmo. A responsabilidade pelo outro é o bem, conteúdo ético por excelência, e o filosoficamente primeiro, anterior a toda anterioridade. "Sair de si é ocupar-se com o outro, com o sofrimento e com a morte dele, em vez de ocupar-se com sua própria morte. () Penso que é o descobrimento do fundo de nossa humanidade, o próprio descobrimento do bem no encontro com o outro, nao tenho medo da palavra bem; a responsabilidade pelo outro é o bem. Nao é agradável, é bem (COSTA, 2000, p.44-45).


Dessa forma, pode-se entender a linguagem em Lévinas como a saída, ou seja, a manifestaçao do ser (ontologia) que vai além para atingir o Outro, destinatário da comunicaçao, da solidariedade e da realizaçao pessoal.

A ética para Lévinas, antecede a Filosofia, e por filosofia ele a compreende como sabedoria do amor. Portanto, com fins de interesse pelo interlocutor destinatário da linguagem.

O diálogo é um conceito marcante em Lévinas e permeia toda a sua açao nao só em se tratando de alteridade mas como questao ontológica para atividade do ser, assim este diálogo age de várias formas, como diálogo com a Bíblia, como momento religioso e pré-filosófico, a fim de buscar uma razao mais original que a religiosa para poder comunicar filosoficamente; diálogo filosófico e cristao com a Europa, a fim de compreender a fracassada cristianizaçao da Europa, fracasso este estampado nas trágicas guerras ocorridas num espaço de um quarto de século:


A guerra destrói a identidade e a possibilidade da alteridade de todos os que nele estiverem envolvidos. () A guerra nao mostra a exterioridade nem um outro enquanto Outro; destrói a identidade do Mesmo. A face do ser que aparece na guerra se fixa no conceito de totalidade que domina a Filosofia Ocidental" (LÉVINAS in COSTA, 2000, p. 97).



Sobre as relações da linguagem com as coisas, afirma:


Estamos rodeados de seres e de coisas com os quais mantemos relações. Pela vista, pelo tacto, pela simpatia, pelo trabalho em comum, estamos com os outros. Todas estas relações sao transitivas. Toco um objeto, vejo o outro, mas nao sou o outro (LÉVINAS, 1982, p. 50).


Na EdC as relações evoluem quando se pensa e se trabalha de forma coletiva e isto tem acarretado satisfaçao e realizaçao nao só no trabalho mas no todo da vida. O "homem novo" proposto por Chiara Lubich, comunica vida e dialoga com o Outro considerando-o como participante de uma mesma realidade à qual caminham: uma sociedade justa, mais fraterna e solidária.




Com isso Dussel quer indicar que a vida humana de cada sujeito é o constitutivo intrínseco, o conteúdo de tudo o que aparece como mercado. (DUSSEL, 2002, p. 527-528).

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